sábado, 9 de abril de 2011
Entrevista a revista Veja 17/10/1990
Lutando contra o estigma da violência numa turnê consagradora, Renato Russo transforma o Legião Urbana na sensação dos palcos e do disco
É como se o personagem certo entrasse no filme errado - algo como Arnold Schwarzenegger saltitando e cantando pelos bosques do Tirol no papel de Noviça Rebelde. O público que foi ao estádio do Guarani, em Campinas, no interior de São Paulo, na quinta-feira passada, assistir ao show do grupo Legião Urbana acabou surpreendido pelo vocalista Renato Russo. Ele, que foi um dos fundadores no país do movimento punk - aqueles cujos seguidores costumavam furar o próprio nariz com alfinetes e a paciência alheia com a pose de rebeldes automarginalizados -, entrou no palco sobraçando um colorido buquê de flores. Ele, que em shows anteriores metralhou platéias classificando-as de "fascistas" ou "bobocas", passou as duas horas de espetáculo namorando o público, chegando a agradecer os aplausos de joelhos. Por fim, ele, que ficou conhecido com virulentos protestos musicas no quilate de Que País É Este (Nas favelas/No Senado/Sujeira pra todo lado), reservou um momento do show para elogiar a campanha antidrogas do governo e informar que "o Brasil é o país do futuro". Só um componente do show, nesse rosário de surpresas, não mudou: o extraordinário sucesso do grupo. O Legião Urbana se consolidou, na turnê que há seis meses cumpre pelo país, como o acontecimento mais quente em sua área de atuação musical, levando sucessivamente as platéias ao delírio. Em diversos shows no passado, esse delírio desaguou em quebra-quebras dignos de um levante de presídio, como ocorreu em abril, quando o ginásio poliesportivo de Poços de Caldas, em Minas Gerais, foi parcialmente depredado pelo público. Hoje, porém, Renato Russo, líder, cabeça pensante e imagem do Legião, parece disposto a conquistar o público com flores e não com metralhadoras. A guinada do grupo começou no ano passado, com o lançamento do disco As Quatro Estações, no qual trocou o som pesado e primal que marcava os LPs anteriores por canções que falam de amor e melodias mais elaboradas. Alguns fãs - aqueles que sempre veneraram Renato Russo como o messias do rock pesado - torceram o nariz. Com a virada, no entanto, o Legião mais ganhou do que perdeu admiradores. As Quatro Estações vendeu até agora nada menos que 730 000 cópias, mais do que a soma dos últimos LPs dos principais rivais do Legião, Cazuza e Paralamas. Enquanto essas bandas se apresentam normalmente em teatros, o Legião só faz shows em ginásios e estádios de futebol. Em Campinas, na quinta-feira, o público estimado era de 16 000 pessoas, em pleno meio de semana. O grupo chegou a arrastar 60 000 pessoas para um show no Jockey Clube do Rio de Janeiro, em julho, e 42 000 pessoas para o estádio do Palmeiras, em São Paulo, em agosto.
Fundo da Cartola - Com esse desempenho, o Legião Urbana herda a abandonada coroa do RPM no reinado do rock nacional - e as semelhanças terminam por aí. O RPM, à luz do marketing, era o protótipo da banda destinada a fazer um megassucesso - e o Legião, um grupo fadado a agradar apenas a um público restrito. O RPM apresentava um vocalista com pose de astro pop inglês e voz sensual - Paulo Ricardo. O Legião ataca com Renato Russo, um cantor com a aparência de um jogador de pôquer em fim de noite, a sensualidade de uma vovó de pijama e proclamações bissexuais: "Eu sempre gostei de meninos, gosto de meninas também", disse numa entrevista recente. Em contrapartida à música e às letras discursivas do RPM, o Legião tinha a oferecer até há pouco um som primitivo e poesias rebuscadas, coalhadas de citações e metáforas, embora sempre criativas. Como a música não é só marketing, mas também talentos e idéias, o RPM passou e o Legião Urbana continua. Em As Quatro Estações, além da vendagem astronômica, o grupo conseguiu um feito singular na MPB: emplacar nas rádios seis faixas do disco. Essa proeza é ainda mais significativa ao se considerar que essas canções contrariam as receitas de sucesso. Nenhuma delas tem um refrão marcante, em geral as letras são longas e algumas lançam mão de citações do fundo da cartola. O Legião chega ao requinte - ou à pretensão - de colocar música num soneto de Camões, em Monte Castelo.
Calças Rasgadas - A maioria dessas músicas é resultado da imaginação de Renato Russo, que está para o grupo assim como Maradona para a seleção argentina na Copa da Itália: ele vale por 90% do time. Nascido no Rio de Janeiro e criado em Brasília, filho de um economista do Banco do Brasil, Renato Manfredini Júnior, hoje com 30 anos, é um daqueles cidadãos que desde pequenos são apontados como alguém que irá ser diferente. Aos 4 anos de idade, iniciou seus estudos de piano. Aos 5 , já sabia ler e escrever. Aos 7, mudou-se com a família para os Estados Unidos e, em apenas dois meses, aprendeu a falar inglês. Sempre foi o primeiro da classe. Aos 18 anos, como seria previsível, começou a mudar de comportamento. "Um dia ele chegou em casa com as calças rasgadas e cheias de alfinetes", lembra sua mãe, Maria do Carmo Manfredini. "Disse que tinha virado punk". Tinha mesmo. Data desta época - 1978 - a fundação do grupo Aborto Elétrico, um dos precursores do movimento punk no Brasil. Com o Aborto, em que pontificava ao lado do baterista Felipe Lemos, o "Fê Lemos", hoje no conjunto Capital Inicial, Russo ensaiou as atitudes de rebeldia que no futuro iriam se tornar sua marca registrada. Tocava punk rock em sorveterias da moda e na porta de festinhas de rapazes ricos da cidade com o intuito de azucrinar-lhes a paciência. "Eles nos ameaçavam, e às vezes a polícia aparecia", conta Fê Lemos. "Para fugir, Renato começava a falar inglês e dizia que era filho de algum embaixador. Acabava sendo solto". Com o passar do tempo, Russo deixou de lado o protesto adolescente e acabou por montar o Legião Urbana, cuja formação hoje se completa com o baterista Marcelo Bonfá e o guitarrista Dado Villa-Lobos, sobrinho-neto do compositor homônimo que é a glória da música erudita brasileira.
Golpes de Microfone - Tendo o irrequieto Russo à frente, o Legião sempre conviveu com o estigma de grupo que incita à violência, principalmente porque em muitas ocasiões seus shows desandam em pancadaria de verdade. Em 1988, um show para 42 000 pessoas no Estádio Mané Garrincha, de Brasília, acabou com saldo de mais de 200 feridos, 58 pessoas presas e treze ônibus depredados. Com os ânimos acirrados pela ação da polícia - que investiu a cavalo contra os que tentavam furar a fila - e com o atraso de uma hora da banda, o show já começou tenso. O estopim foi aceso quando um fã da banda subiu ao palco e se agarrou ao cantor, sendo repelido a golpes de microfone. O público, a partir daí, passou a dirigir impropérios e a jogar fogos de artifício sobre a banda, ao que Renato revidou chamando o público de "fascista" e "boboca" e encerrou o show. "Se não fosse o trabalho da polícia, Renato ia ser linchado", diz Hezir Espindola, à época responsável pelo Estádio Mané Garrincha. "Ele foi mal-educado em cena". A turnê de lançamento de As Quatro Estações, ao longo deste ano, não apresentou nenhum episódio tão grave, mas a fama de violência do grupo se manteve. Em Poços de Caldas, as 7 000 pessoas que se acotovelavam num ginásio quebraram vidros do local, destruíam s banheiros e mobilizaram todo o efetivo policial da cidade. Tudo porque, depois do início do espetáculo - que começou com mais de uma hora de atraso -, Renato Russo cantou apenas uma música e se retirou do palco, adiando o show por não estar se sentindo bem. Os shows da mesma turnê realizados em São Paulo e no Rio de Janeiro também tiveram sua cota de emoções. Em São Paulo, em agosto, cerca de 1 000 fãs ficaram de fora do Estádio do Palmeiras devido a um lote de ingressos falsos vendidos para um show. No Rio de Janeiro, onde 60 000 pessoas lotaram o Hipódromo da Gávea em julho, um grupo de fãs baderneiros iniciou uma guerra de areia com os seguranças. Renato Russo ameaçou não voltar para o esperado bis. "Não vim show para animais", berrou ao microfone. O grupo saiu empurrando todo o mundo que estava em volta.
Panela de Pressão - O Renato Russo que protagonizou esses tumultos e o cantor que subiu ao palco em Campinas na semana passada parecem ter tanta afinidade quanto Xuxa e Frankenstein. O humor de Russo parece andar de montanha-russa. Quando está no alto, segundo seus amigos, ele é uma pessoa doce, simpática e capaz de entabular conversas em que brilha o artista talentoso. Quando está em curva descendente, pode transformar os shows em panelas de pressão prestes a estourar pelos ares. "Renato sempre teve temperamento explosivo", avalia Sérgio Resende, um dos donos do bar Gate's, em Brasília, onde o compositor aprontou um qüiproquó em junho passado. Durante a apresentação de um grupo de jazz, ele resolveu subir ao palco para entoar um blues. A princípio, os músicos concordaram em acompanhá-lo, mas logo o canto de Russo se transformou num amontoado de palavras ininteligíveis. Os músicos deixaram o palco, e Russo ganhou uma estrepitosa vaia das 150 pessoas presentes. "Ele é boa pessoa. Apenas não consegue se controlar em certas situações ", avalia Rubens de Carvalho, sócio de Resende no bar. "Há muito exagero no que se fala de Renato", reclama Romildo Valiate Jr., um dos fundadores do fã-clube Legião Urbana no Coração dos Paulistas, que reúne trinta membros e edita um jornalzinho com as novidades sobre a banda. Renato Russo pode não encarnar o agitador que alguns de seus shows fazem supor, mas faz certo esforço para cultivar essa imagem. "Ele é fogo. Quando está disposto, incita mesmo à agitação", diz Walter Fonseca, dono da Fonseca's Gang, empresa paulista que é chamada para garantir a ordem em nove entre dez shows de grande porte realizados no país. "Quando o Legião fecha contratos para shows, inclui uma cláusula que obriga o empresário a convocar nossos serviços, mas, se entramos em cena para acalmar um fã mais exaltado ou violento, Renato vai ao microfone para nos chamar de truculentos", queixa-se Fonseca. "E ainda levamos vaia do público."
Cutelo e Spray - As atuações do Legião Urbana que acabam em tumulto são uma das pontas, entre as mais visíveis devido à projeção do grupo, de um fenômeno que habita os shows de música jovem: o do rock violência. Assim como o Legião, grupos como o Sepultura, de Belo Horizonte, ou Nenhum de Nós, do Rio Grande do Sul, costumam criar faíscas de tensão que logo detonam explosões caso na platéia existam integrantes das gangues organizadas que hoje acorrem aos shows de rock. Herdeiras dos punks e dos skinheads (cabeças raspadas) ingleses, essas turmas jogam pesado e são capazes de bater duro em quem lhes cruze pelo caminho. Há três anos, um desses grupos, o Carecas do ABC, protagonizou um tumulto memorável num show do grupo de rock pesado Ramones, no Palace, em São Paulo. Cerca de oitenta deles reuniram-se em frente ao local entoando gritos de guerra qual vândalos enfurecidos. "Fomos protestar pelo show ser no Palace, onde não dava para entrar porque o ingresso era caro", lembra "Carrasco", codinome de um dos Carecas do ABC. "Esses jovens brigam contra o sistema porque se sentem marginalizados por ele", filosofa Eduardo Correa Lopes, de 27 anos, que, com sua estampa de caminhão FNM, ganhou o apelido de "Caixa d'Água". Há três anos, Lopes integrava as tribos de São Paulo especializadas em transformar shows de rock em arruaças. Hoje, desistiu da militância e ocupa o cargo não menos tranqüilo de inspetor da Febem. Ainda assim, guarda no vocabulário resquícios do jargão dos skinheads. Rapaz rico, para ele, por exemplo, é "bebê". Aprontar uma briga ou cometer um crime é "fazer uma função", e "colocar no cavalete" entende-se por humilhar alguém que foi atacado. "Tenho medo do que possa acontecer daqui para frente nos shows com a sofisticação a que essas gangues estão chegando", diz Walter Fonseca. Nos últimos meses, ao revistar roqueiros em portas de shows, a equipe de Fonseca tem apreendido desde cutelos de açougueiro até a última palavra em instrumento de agressão: um tubo de spray com gás lacrimogêneo, fabricado em Porto Alegre e oficialmente restrito ao uso militar, que é aplicado diretamente no rosto da vítima. Seria disparate dizer que toda essa violência é apenas um reflexo do que acontece nos palcos do rock. Se fosse assim, o teatro La Scala de Milão seria depredado a cada encenação da ópera Aída, em que se pune um soldado enterrando-o vivo com a amante. Grupos como o Legião Urbana carregam o estigma de violentos porque os acordes e as palavras agressivas de muitas de suas músicas, além de incentivar a platéia a dançar e liberar tensões, acabam por servir de pretexto para jovens que são delinqüentes com ou sem rock. O êxito do Legião, a megavendagem de seus discos e a alegria que reina em seus shows quando Renato Russo resolve fazer um bom espetáculo provam que, ao ouvir rock, o público quer mesmo é se divertir. No momento, o Legião Urbana é a melhor opção para isso na música brasileira.
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