quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Histórias Irônicas de Renato Russo


"Que nada gente, esse negócio de timidez é tudo ensaiado!, diz a certa altura do show. Em um pequeno palco, envolto por convidados e integrantes do fã-clube, a Legião Urbana gravava, no dia 28 de janeiro de 1992, o segundo Acústico da história da MTV brasileira e o primeiro de uma banda de pop rock - João Bosco havia sido o precursor. A gravação aconteceu no extinto Hippodrommo, no bairro paulistano de Perdizes, casa famosa pelo estigma de "caveira de burro" - aquele lugar onde, nada dá certo, por mais que mude de nome, decoração ou público alvo. Desde então seu endereço já abrigou, entre outras coisas, uma igreja evangélica, e hoje é... bingo!
A Legião estava lançando seu quinto disco, V, e Renato tinha esperanças de não sair em turnê. "Você nunca sabia o que podia acontecer em um show da legião, Renato podia não aparecer, dar chilique, passar mal... O Dado dizia que eles viviam sob tortura", lembra Dinho Ouro Preto, cantor do Capital Inicial, conterrâneo e amigo dos legionários que compareceu ao Hippodrommo naquela tórrida tarde de verão. A platéia incluía também o cantor inglês Seal, escalado para o Hollywood Rock daquele mês - ele estava estourando com "Crazy" -, e o então VJ Luiz Thunderbird, que, reza a lenda, chorou de emoção. “É verdade que eu me emocionei, mas não me lembro desse detalhe. Eu e o Rogério fomos os únicos a ver a passagem de som,.. que durou umas quatro horas! Pedi para tocarem “Pais E Filhos”, uma das minhas musicas favoritas, e, no show, Renato a dedicou a mim, dizendo: “Esta vai para Thunderbird, o VJ sem pai nem mãe” Foi lindo", atesta o cantor da banda Devotos De Nossa Senhora Aparecida. É público e notório que Renato não gostava de cantar ao vivo - depois de certo ponto na carreira, só fazia isso em último caso. Na apresentação para a televisão, ele dava pistas: "Gente, comprem o disco! Ajudem! A gente só vai sair em turnê depois de vender uns 250 ou 300 mil, senão fica aquele pessoal lá na frente (voz fina e enjoada) : toca 'Ainda É Cedo!".

MENUDO, MITCHELL E YOUNG
Por outro lado, é bem verdade que ele parecia à vontade no pequeno palco. "Me 1embrou os tempos do Renato Trovador Solitário entre o final do Aborto e o começo da Legião, quando ele se apresentava sozinho cantando músicas que contavam histórias, tipo “Faroeste Caboclo” e “Dado Viciado”, 1embra Dinho. No disco, o tal trovador fala pelos cotovelos, como sempre - ele chega a tangenciar o assunto da Aids, dizendo: "Tanta coisa acontecendo... olha gente, isso é sério, safe sex or no sex (sexo seguro ou sexo nenhum)" - brincando e tocando até música do Menudo. Menudo? Pois é. Naquela época em que os porto riquenhos já não estavam no auge e Ricky Martin engatinhava em carreira solo, ele desencavou "Hoje A Noite Não Tem Luar" (no original, "Hoy Me Voy Para México") e a cantou, sozinho ao violão. "não foi brincadeira, tipo tocar jingle de sucrilhos, não. Ele gostava mesmo da música, que aliás nem fez muito sucesso" , 1embra Dado. Ao final, Renato pergunta: "Não é bonitinha?" e confessa: "Me emocionei".
A inesperada versão não foi ao ar com o especial da MTV e nem deveria ter entrado no CD. Antes de cantar, Renato pergunta aos técnicos: "não está gravando não, né?", e recebe uma resposta afirmativa. "Resolvi gravar tudo para poder fazer alguma coisa mais tarde. Se eu não tivesse feito, provavelmente não haveria disco" , gaba-se o engenheiro de som Egídio Conde. Dado Villa-Lobos, porém, desmente sua versão [veja boxe].

PIADAS E CHILIQUES
Além de Ricky, Ray, Roy, Robbie e Charlie, foram 1embrados outros favoritos de Renato : o Buffalo Springfield (banda que contou com Neil young antes de sua carreira solo), com "On The Way Home", que se funde a "Rise", do pós punk Public. Image Limited; a cantora canadense Joni Mitchell, em "Pretty Lies", e a distorção pop do Jesus & The Mary Chain do com "Head On" (gravada também pelos Pixies). O repertório da legião aparece numa seleção bastante criteriosa. As quatro primeiras músicas são dos quatro primeiros discos, e em ordem: "Baader-Meinhof Blues", "Índios", "Mais Do Mesmo" e "Pais E Filhos"- Nada de "Será" (Renato, em certo momento, debocha do sotaque baiano de Simone - que registrou a canção, cantando "nos pérdérémos entre mónstros...” e depois confessa: “Prefiro a versão da Cássia Eller”), Geração Coca-Cola ou outros hits óbvios, Entram mais algumas músicas de V, como "Sereníssima", "Metal Contra As Nuvens" e "O Teatro Dos Vampiros", além de outras faixas conhecidas dos discos anteriores. "No final da gravação ele estava feliz da vida, todos comemoraram muito", lembra Rogério Gallo, que dirigiu o programa ao lado de Marcelo Machado, " A banda estava no auge, havia muitos assessores cuidando de tudo", recorda o diretor musical do evento, Pena Schmidt. Mas nem todo mundo concorda com o tal clima de total paz e tranqüilidade. "O Renato ficava nervoso, brigava, criou um clima tenso em vários momentos dos ensaios e da gravação", lembra Marcelo. O ex-técnico de som da MTV Daniel Billio recorda um pequeno piti do cantor, Ao repetir uma música, um operador de som, atrás do palco e bem distante da banda, comentou: ',Pô, na gravação do João Bosco foi tranqüilo, tudo de primeira". Para a surpresa de todos, Renato ouviu e mandou, na lata: "É, mas eu tô errando aqui e vou repetir quantas vezes for necessário até acertar".

"SILÊNCIO RESPEITOSO"
No final de outubro, o público poderá levar para casa este Acústico em CD e vídeo - oito anos depois da gravação e a veiculação na MTV "Nunca tivemos pressa para lançar isso, já tínhamos um disco ao vivo, o Música para Acampamentos", lembra Dado, que foi a Los Angeles com o companheiro Marcelo Bonfá para a mixagem. "Foi simples, porque afinal eram só dois violões, uma voz e uma percussão eventual", lembra o baterista. “É verdade que o som da voz vazava no microfone do violão e vice-versa, mas deu para acertar tudo." O processo de masterização se deu no estúdio de Bernie Grundman, um dos mais badalados profissionais dos Estados Unidos (com discos de Michael Jackson no currículo).
Antes da gravação, a banda ensaiou por seis horas seguidas, e o resultado é emocionante e tecnicamente bem satisfat6rio. Claro, há alguns errinhos, como na imensa letra de "Faroeste Caboclo" (Renato gagueja ao falar "nunca brinque com um Peixes de ascendente Escorpião"), que fecha o CD, Bem que Renato avisa antes, escolhendo bem o verbo: "Vamos tentar Faroeste”. De resto, são aqueles erros que só os músicos percebem, o público continua boquiaberto. "Vocês são muito gentis, eu errei pra caramba", diz ele, que nada tinha de auto-indulgente, ao agradecer os aplausos a belíssima versão acústica de "Índios".
O álbum tem uma particularidade em relação a discos ao vivo em geral e especialmente em relação a discos ao Vivo em geral e especialmente da legião: afora os e algumas participações (tímidas) nas conversas de Renato o público permanece silencioso, num respeito quase religioso. “Os Shows elétricos, grandes, da Legião eram como a beatlemania ou um culto evangélico, o público berrava de uma maneira tão histérica que às vezes abafava o som da banda. Nessa apresentação acústica aconteceu o contrário, uma missa medieval, com todo mundo querendo ouvir tudo e não soltando um pio", define Dinho.

UM MEMORIAL PARA RENATO
"Todo mundo adorava a Legião Urbana, tanto o público quanto a equipe técnica. O silêncio partiu mesmo desta adoração, não houve nenhum pedido da MTV para que as pessoas ficassem quietas", diz o diretor Marcelo Machado. Dado Villa Lobos, mais uma vez, tem outra versão (veja boxe).
Controvérsias, grandes ou pequenas sempre acompanharam a Legião e suas várias formações (além de Renato, Dado e Bonfá, a banda foi acompanhada, ao vivo, por diversos tecladistas, baixistas e guitarristas], O incidente mais lamentável foi o da apresentação no Estádio Mané Garrincha, em Brasília, em 1988, quando uma apresentação interrompida foi seguida por tumulto. "Foi lamentável, aquilo fez o Renato odiar ainda mais os palcos", Lembra Fernando Artigas, produtor do espetáculo e amigo pessoal do cantor. Ao lado dos pais de Renato, Renato e Carminha Manfredini, e da Secretaria de Cultura do Distrito Federal, Fernando é um dos articuladores do Memorial Renato Russo, inicialmente programado para ser inaugurado em abril do ano que vem.
Já existe, claro, um Espaço Cultural Renato Russo, onde acontecem shows e oficinas, na quadra 508 Sul da capital. "Agora o projeto foi encampado pela Secretaria de Cultura e vamos usar uma das salas para o memorial, que terá os óculos, roupas e alguns objetos do Júnior", conta dona Carminha. Ela lamenta que o filho vivia cercado de "falsos amigos", que roubavam seus pertences, "Ele ganhou muitos prêmios, inclusive da BIZZ, mas acabou sumindo tudo.” A gravadora EMI-Oden e amigos do cantor em Brasília e no Rio serão entrevistados pela curadora Sonia Paiva, "Depois vamos contratar um museólogo, que organizará a exposição”, adianta a secretária de Cultura do Distrito Federal,Luiza Dorna. A idéia é inaugurar o memorial como parte das comemorações dos 40 anos de Brasília.

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